A fé pública dos policiais e a Corrosão da Justiça: uma análise crítica e necessária. Por Augusto Mitchell

A fé pública dos policiais e a Corrosão da Justiça: uma análise crítica e necessária. Por Augusto Mitchell

A palavra do policial vale mais que a do cidadão? A resposta é sim! A “Fé Pública” é o que prevalece!

Estatisticamente, de acordo com levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que realizam estudos e pesquisas sobre condenações penais com foco em aspectos criminais, sociais e de segurança pública, em 2023, setenta por cento (70%) das condenações por tráfico de drogas no Brasil foram baseadas exclusivamente no testemunho do agente policial como prova decisiva. Essa realidade preocupante se fundamenta na ideia da “fé pública”, um conceito ultrapassado e distorcido que confere ao depoimento de policiais um valor superior, mesmo na ausência de provas materiais.

Imagine só: você está indo para casa depois de um dia de trabalho e é abordado pela polícia. Sem qualquer justificativa, eles te revistam e “encontram” drogas ou armamento que você nunca viu? Neste momento resta tão somente a palavra deles contra a sua. Quem você acha que a justiça vai acreditar? Para quem o promotor de justiça vai apontar o dedo?

Essa é a história de milhares de brasileiros, em sua maioria jovens, negros e pobres, que são vítimas de um sistema que privilegia a palavra do policial em detrimento da presunção de inocência.

Além disso, é importante considerar o risco de desafetos pessoais com agentes de segurança pública, que podem resultar na imputação de crimes a indivíduos inocentes, movidos por pura e inimaginável vingança. Devido ao corporativismo existente entre policiais, a vítima de uma possível armação muitas vezes sequer perceberá que foi alvo de uma manipulação, agravando ainda mais a injustiça.

“Fé pública”: quando a palavra do policial condena

Juízes frequentemente se apoiam na “fé pública” para justificar condenações baseadas apenas no depoimento de policiais, ignorando a presunção de inocência e abrindo espaço para abusos e falhas no sistema. Essa prática afeta desproporcionalmente jovens negros e pobres, que se tornam alvos fáceis de prisões injustas.

Consequências da “fé pública”:

  • Condenações sem provas: A palavra do policial se torna a principal “prova” em muitos casos de tráfico de drogas, mesmo sem evidências que a corroborem.
  • Criminalização da pobreza e da cor: Jovens negros e pobres são os mais afetados por essa prática, perpetuando um ciclo de desigualdade e injustiça.
  • Abusos e falhas: A “fé pública” facilita a ocorrência de abusos policiais, como a falsificação de provas e a extorsão, além de encobrir falhas na investigação.
  • Violação da presunção de inocência: Aceitar a palavra do policial como verdade absoluta fere o direito fundamental à presunção de inocência, garantido pela Constituição.

Nesse contexro é preciso lembrar a história de Johnny Jamaica, músico e estudante de fotografia, é usuário de maconha. Ele carregava consigo uma pequena quantidade para uso próprio, cerca de 10 ou 15 gramas quando foi abordado por policiais em 17 de fevereiro de 2016. Essa abordagem transformou o jovem negro, então com 24 anos, em um perigoso traficante já que o rapaz, na delegacia, foi acusado de tráfico, com base na “descoberta” de mais drogas e uma balança que, segundo Jamaica, foram plantadas pelos próprios policiais.

Isso foi suficiente para a Polícia Civil aceitar a ocorrência, o Ministério Público transformá-la em denúncia e a Justiça o considerar culpado por tráfico de drogas. As únicas provas: o testemunho dos PMs e a porção de maconha.

“É o que te falo: o juiz não vai contra a palavra dos caras, eles são os olhos do juiz”, desabafa Johnny.

Sem provas além do testemunho dos policiais, Johnny foi condenado. A “fé pública” prevaleceu sobre sua palavra, sua liberdade e sua vida.

Rafael Braga: injustiça em dose dupla

Rafael Braga, um ex-catador de recicláveis, foi preso em 2013 durante as manifestações no Rio de Janeiro, acusado de portar material explosivo. As provas? Dois frascos lacrados de produto de limpeza e a palavra dos policiais. Condenado a 5 anos de prisão, Rafael teve sua vida transformada por uma acusação infundada.

Em 2016, Rafael foi preso novamente, desta vez por tráfico de drogas. Mais uma vez, a única “prova” era a palavra dos policiais. Condenado a mais de 11 anos, Rafael Braga se tornou um símbolo da injustiça perpetuada pela “fé pública”.

Histórias como as de Johnny e Rafael não podem se repetir. É hora de questionar a “fé pública” e exigir um sistema judicial mais justo e transparente. A palavra do policial não pode valer mais que a sua.

A fé pública atribuída aos policiais pelo sistema judicial brasileiro constitui um ponto de extrema fragilidade e suscetibilidade à corrupção. Historicamente, a humanidade tem se mostrado vulnerável à tentação do ganho ilícito, e a figura do policial, por mais que idealizada, não está imune a essa realidade. A mitologia grega, rica em narrativas sobre a natureza humana, oferece exemplos eloquentes dessa vulnerabilidade. O mito do Rei Midas, consumido pela ambição e transformado em vítima de sua própria cobiça, serve como alegoria atemporal da capacidade humana de sucumbir à corrupção.


No contexto brasileiro, a precariedade salarial de muitos policiais, em contraste com as fortunas movimentadas pelo crime organizado, cria um ambiente propício à violação da ética e do dever. Inúmeros casos de policiais envolvidos em esquemas de corrupção, milícias e facções criminosas evidenciam a falibilidade da crença na integridade inabalável dos agentes da lei.


A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVII, garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. No entanto, a fé pública conferida aos policiais, na prática, subverte esse princípio, permitindo que a palavra de um agente da lei seja suficiente para condenar um indivíduo, mesmo sem provas robustas que a corroborem. Ora, essa prática viola o devido processo legal e o direito à ampla defesa, pilares do Estado Democrático de Direito. Me parece algo muito contraditório em nosso sistema jurídico.

“É inadmissível que a palavra do policial seja a única ‘prova’ para uma condenação. A ‘fé pública’ não pode ser um cheque em branco para ignorar a presunção de inocência e o direito à ampla defesa. Precisamos de um Judiciário mais crítico, que entenda que há corrupção em qualquer setor do Estado brasileiro, que exija provas concretas e utilize outros elementos como provas testemunhais, documentais e o histórico do policial para garantir julgamentos justos. Condenar com base apenas na ‘fé pública’ é negar e “furar” a Constituição e perpetuar a injustiça.”

Reforço que a Constituição garante a todos a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença. Atribuir “fé pública” absoluta ao policial é, na prática, condenar antecipadamente o acusado, negando-lhe o direito à ampla defesa e ao devido processo legal.

É hora de romper com essa lógica falha e construir um sistema de justiça mais justo, equânime e transparente, onde a palavra de um policial seja ponderada com base em fatos, provas e no respeito incondicional à Constituição.

O ordenamento jurídico brasileiro carece de uma atualização que reconheça a necessidade de provas adicionais para respaldar a palavra do policial. A adoção de câmeras de segurança, em especial as câmeras de uniforme, surge como ferramenta crucial para garantir a transparência e a isenção nas ações policiais. A Lei nº 13.869/2019, que trata dos crimes de abuso de autoridade, representa um avanço nesse sentido, ao criminalizar a conduta de “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”.

O que podemos fazer?

É preciso lutar por mudanças que garantam justiça e equidade no sistema judicial:

Judiciário mais crítico: Juízes devem questionar a versão policial e buscar provas que a confirmem, garantindo o direito à ampla defesa e ao contraditório.
A implementação de um sistema de pontuação para avaliar o desempenho dos policiais, com base em critérios objetivos como histórico disciplinar, número de denúncias e elogios recebidos, pode contribuir para a construção de uma cultura de valorização da ética e da probidade na corporação. Esse sistema, similar ao utilizado em países como os Estados Unidos, permitiria que a palavra de um policial com alto “score” tivesse maior peso em um processo judicial, enquanto a de um policial com histórico problemático seria vista com maior cautela.

Reforma na lei: Precisamos de leis que limitem o poder da palavra policial como única prova, exigindo evidências adicionais para condenações por tráfico de drogas.

Descriminalização: A descriminalização das drogas é uma alternativa que pode reduzir a criminalização seletiva e os abusos policiais relacionados ao tráfico.


É imperativo que o sistema judicial brasileiro abandone a crença ingênua na fé pública absoluta dos policiais e adote mecanismos que garantam a justiça e a imparcialidade. A história nos mostra que o homem é suscetível à corrupção, e a lei deve ser aplicada com rigor e isenção, independentemente da posição social ou profissional do indivíduo. Afinal, como nos lembra o filósofo grego Platão em “A República”, a justiça é a virtude suprema que garante a harmonia social e a verdadeira liberdade.

A “Fé pública” do policial no Sistema Penal Brasileiro – Privilégio ou Ameaça ao Estado Democrático de Direito?

Augusto Mitchell

Introdução

O conceito de “fé pública” atribuído aos policiais no sistema judicial brasileiro tem suscitado intensos debates sobre sua adequação nos julgamentos penais, principalmente em casos de tráfico de drogas e porte ilegal de armas que são passiveis de provas plantadas. Historicamente, esse princípio confere presunção de veracidade aos relatos de agentes públicos, em especial policiais, nos procedimentos judiciais. No entanto, essa presunção tem se mostrado um fator problemático, levando à condenação de indivíduos com base exclusiva no testemunho policial, sem a devida produção de provas materiais, violando, assim, garantias constitucionais fundamentais.

A Realidade Estatística e a Presunção de Inocência

De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2023, cerca de 70% das condenações por tráfico de drogas no Brasil se basearam exclusivamente no depoimento de policiais, sem a apresentação de provas concretas adicionais. Tal realidade gera uma perigosa inversão do princípio da presunção de inocência, garantido pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Quando a palavra de um policial se torna o único elemento para sustentar uma condenação, em detrimento de um conjunto robusto de provas que comprovem a culpa do acusado, o Estado falha em seu dever de garantir um julgamento justo. Essa falha levanta um questionamento crucial: qual a finalidade da Corregedoria de Polícia se não a de investigar e coibir a corrupção policial? Quantos policiais, outrora responsáveis por prender, hoje se encontram presos por seus próprios crimes?

Essa prática não só contradiz os pilares do Estado Democrático de Direito, como também abre margem para abusos, principalmente em um cenário onde a discriminação racial e a criminalização da pobreza estão profundamente enraizadas. Jovens, negros e moradores de periferias são, desproporcionalmente, as principais vítimas de um sistema que confere poder quase absoluto à palavra do agente policial.

FÉ PÚBLICA E A CORRUPÇÃO: Uma Relação de Risco

Atribuir uma confiança desmedida à palavra dos policiais torna o sistema vulnerável à corrupção e à vingança pessoal. A precariedade salarial enfrentada por muitos agentes de segurança, aliada ao poder exercido por organizações criminosas, cria um ambiente onde a manipulação de provas e o falseamento de acusações tornam-se não apenas possíveis, mas também atraentes para aqueles suscetíveis à corrupção.

Essa vulnerabilidade é retratada em histórias como a de Johnny Jamaica e Rafael Braga, cujas condenações se deram unicamente com base nos testemunhos policiais. Ambos os casos expõem o quão frágeis são os direitos fundamentais quando o sistema adota a “fé pública” como critério absoluto de verdade.

O CONCEITO DE “FÉ PÚBLICA” EM UM HISTÓRICO DECLÍNIO

A tendência de alguns indivíduos em ceder à corrupção, seja como corruptores ou corrompidos, é especialmente evidente em países que tem uma longa história de práticas ilícitas enraizadas nas estruturas sociais e políticas.

Assim, a propensão humana à corrupção, seja como corruptor ou corrompido, encontra terreno fértil em países com histórico de desvios de conduta, como o Brasil, infamemente reconhecido como “berço da corrupção”. Essa predisposição, explorada por figuras como Maquiavel em “O Príncipe”, que descreve a natureza humana como ambiciosa e egoísta, se manifesta na busca por poder e riqueza, mesmo que à custa da ética. Rousseau, em “Do Contrato Social”, argumenta que a corrupção surge da desigualdade e da perda da virtude cívica, corroendo as instituições e a sociedade. Em um ambiente onde a impunidade prevalece e a moral é flexível, a tentação de se beneficiar ilicitamente se torna ainda mais sedutora, perpetuando o ciclo vicioso da corrupção.

Na mesma toada, de acordo com a teoria de Thomas Hobbes, o homem nasce com uma natureza má e não tem a capacidade de viver em sociedade de maneira harmônica por conta própria. Por isso, ele precisa de um Estado autoritário que imponha regras e normas de convivência. Hobbes sustenta que, devido à insociabilidade inata do ser humano, é necessário um pacto social, no qual os indivíduos abrem mão de sua liberdade natural – que prevalece no estado de selvageria – para garantir a paz e a ordem sob um governo absoluto.

A origem da “fé pública” remonta a tempos em que a autoridade estatal gozava de um prestígio incontestável. No entanto, esse conceito mostra-se desatualizado e problemático em uma sociedade que preza pela igualdade de direitos e pelo respeito ao devido processo legal. A experiência demonstra que a infalibilidade da palavra de agentes públicos é, muitas vezes, uma ficção perigosa, capaz de arruinar a vida de inocentes.

A evolução das sociedades democráticas exige um sistema judicial mais criterioso, onde a verdade processual seja construída com base em provas concretas e irrefutáveis. O uso de câmeras corporais pelos agentes de segurança, por exemplo, surge como um mecanismo que poderia contribuir para a transparência e a imparcialidade nas abordagens policiais, garantindo que o depoimento dos policiais seja validado por registros visuais e auditivos.

A NECESSIDADE DE PROVAS CONCRETAS

A “fé pública” não pode ser um cheque em branco que permita condenações sem provas adicionais. Como bem ensina o artigo 5º da Constituição, a ampla defesa e o contraditório são direitos inalienáveis de todo cidadão. O juiz, ao apoiar-se exclusivamente no testemunho de policiais, subverte esses princípios, perpetuando um ciclo de injustiça.

É inadmissível que a palavra do policial seja a única prova utilizada para uma condenação. Como qualquer outro depoimento, ela deve ser corroborada por outros elementos, como provas documentais, periciais ou testemunhais, para que o direito à ampla defesa e ao contraditório seja efetivamente respeitado.

O Que Fazer: Reformas Necessárias

É urgente a revisão do tratamento dado à “fé pública” no Brasil. Algumas medidas que podem ser tomadas para corrigir esse desequilíbrio incluem:

  1. Judiciário Mais Crítico: Juízes devem adotar uma postura mais analítica e questionadora quanto ao depoimento policial, exigindo a apresentação de provas complementares que sustentem a versão apresentada.
  2. Reforma na Legislação Penal: Novas leis devem limitar o poder probatório exclusivo da palavra policial em casos de tráfico de drogas e exigir que condenações sejam respaldadas por provas concretas e imparciais.
  3. Adoção de Câmeras Corporais: O uso obrigatório de câmeras por policiais em operações seria um avanço significativo para garantir a transparência e a lisura nos procedimentos de apreensão e prisão.
  4. Avaliação de Histórico Policial: A credibilidade do testemunho de um policial deve levar em consideração seu histórico profissional, levando-se em conta denúncias e registros de conduta inadequada, de forma a evitar que maus profissionais utilizem seu cargo para manipular situações em benefício próprio.
  5. Descriminalização de Drogas: A descriminalização do uso de drogas também é uma medida que pode reduzir a criminalização seletiva e o abuso da fé pública, prevenindo que pequenos usuários sejam tratados como traficantes perigosos.

Considerações Finais

O princípio da “fé pública” atribuído aos policiais, tal como aplicado hoje no sistema penal brasileiro, está em desacordo com os preceitos constitucionais e os valores democráticos. Se não repensarmos essa prática, estaremos perpetuando um ciclo de injustiça, sobretudo contra as populações mais vulneráveis do país. Para que o Estado Democrático de Direito seja efetivamente respeitado, é necessário que a palavra do policial seja apenas um dos elementos no processo de busca pela verdade, e não o único.

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Breve síntese do texto:


O autor argumenta que o conceito de “fé pública” no sistema judicial brasileiro, que dá credibilidade automática aos relatos de policiais, é problemático e leva a condenações injustas, especialmente em casos de tráfico de drogas e porte ilegal de armas. Ele destaca que essa prática viola o princípio da presunção de inocência e facilita a corrupção e os abusos de poder.

Mitchell apresenta dados mostrando que a maioria das condenações por tráfico se baseia apenas em depoimentos policiais, sem provas materiais. Ele critica essa situação, pois coloca em risco os direitos fundamentais dos cidadãos, principalmente de jovens negros e pobres, que são os mais afetados por essa prática.

O autor defende a necessidade de reformas no sistema judicial para que a “fé pública” não seja o único critério para condenações. Ele propõe medidas como a adoção de câmeras corporais por policiais, a análise crítica dos depoimentos policiais pelos juízes e a exigência de provas concretas para condenações.

Em resumo, o autor faz uma crítica contundente ao uso da “fé pública” como prova absoluta em processos criminais, argumentando que essa prática é incompatível com um Estado Democrático de Direito e clama por reformas que garantam julgamentos justos e imparciais.

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