Polícia Militar e o estado de exceção permanente
Salvador, Bahia – Uma tese acadêmica de 2016 do pesquisador Fernando Nogueira Martins Júnior, mestre em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Minas Gerais (UFMG), lança luz sobre a atuação da Polícia Militar no Brasil, apontando para um cenário preocupante: a instituição opera sob um estado de exceção permanente, caracterizado pela violência e pela falta de controle democrático. O estudo, intitulado “OS BONS EXECUTORES DA LEI: A POLÍCIA SOBERANA COMO DISPOSITIVO
CENTRAL DO ESTADO DE EXCEÇÃO BRASILEIRO“, examina o papel da PM na sociedade brasileira, levanta questões cruciais sobre o uso excessivo da força e a criminalização seletiva de grupos marginalizados.
Dado o lapso temporal, entre 2016 e 2023, a esperança de conviver em uma sociedade sadia e minimamente equilibrada, parece se debater agonizante. solitariamente, à beira mar pois, de lá para cá as coisas pioraram e muito! Ao menos é isso que dizem os números.
Martins Júnior, que também é especialista em Gestão de Segurança Pública pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e possui vasta experiência como policial militar, argumenta em sua tese que a PM age à margem da ordem constitucional democrática, amparada por um mandato vago de “manutenção da ordem pública”. Essa ausência de definição clara permite que a corporação atue com grande discricionariedade, escolhendo quem será alvo de intervenção policial com base em critérios como raça, localização e idade.
O estudo destaca o processo de “criminalização secundária”, no qual a PM decide quem será encaminhado ao sistema judicial, perpetuando um ciclo de violência e exclusão social. A pesquisa aponta que a intensidade da violência e da arbitrariedade praticada pela PM configura um estado de exceção permanente, onde os direitos e garantias fundamentais são sistematicamente violados.
“A PM opera sob uma lógica de guerra, tratando cidadãos como inimigos a serem eliminados”, afirma Martins Júnior. “Essa mentalidade bélica se manifesta no uso excessivo da força letal, na prática da tortura e nas abordagens violentas e humilhantes em comunidades periféricas”.
O estudo também analisa o discurso oficial que legitima a violência policial, construindo uma narrativa de “guerra contra o crime” que justifica a eliminação de “elementos indesejáveis”. Essa retórica desumanizante contribui para a naturalização da violência e para a banalização da morte, especialmente de jovens negros e pobres.
Diante desse cenário alarmante, Martins Júnior defende a necessidade de uma reforma profunda na PM, com a desmilitarização da corporação e a criação de mecanismos efetivos de controle externo. Ele propõe a transferência de responsabilidades de segurança pública para a sociedade civil, com a implementação de políticas públicas focadas na prevenção da violência e na promoção da justiça social.
“É preciso romper com a lógica do medo e da repressão e construir um modelo de segurança pública que garanta os direitos de todos os cidadãos”, conclui o pesquisador. “A violência policial não é a solução para os problemas de segurança pública, mas sim parte do problema”.
Quando o Estado falha, a sociedade sangra
A tese de Martins Júnior, que escancara a violência policial como um estado de exceção permanente no Brasil, revela uma face cruel da realidade: a falta de suporte e assistência aos próprios policiais que arriscam suas vidas diariamente no combate ao crime. Enquanto o Estado exige bravura e eficácia no enfrentamento da criminalidade, nega aos seus agentes condições dignas de trabalho, salários justos e, principalmente, acompanhamento psicológico e emocional adequado.
Essa omissão tem consequências devastadoras. Policiais submetidos a situações de extremo estresse, violência e perda, muitas vezes desenvolvem transtornos mentais graves, como depressão, ansiedade e síndrome de estresse pós-traumático. Sem o devido tratamento, esses problemas se agravam, levando a casos de suicídio, violência doméstica e até mesmo a episódios de surto psicótico, como o ocorrido recentemente em Salvador.
Em 2021, o soldado Wesley Soares Góes, foi tomado, supostamente, por um surto psicótico, na região do Farol da Barra em Salvador. O PM se rebelou e se refugiou, armado, aos pés do Farol da Barra. A cena, que chocou a cidade, terminou em tragédia, com o PM sendo abatido por seus próprios colegas. Um desfecho trágico que expõe a fragilidade do sistema e a falta de preparo para lidar com a saúde mental dos policiais. Mas daí resta a pergunta: Teria alguma coisa adicional nesta histórira que não temos conhecimento?
Enfim, mas a negligência do Estado não para por aí. Falhas graves nos processos de seleção e admissão de novos policiais permitem que indivíduos com traços de psicopatia e tendência criminosa vistam a farda. Essa falha reiterada coloca em risco não apenas a vida dos próprios policiais, mas também a segurança de toda a sociedade.
Quase 97% das pessoas assassinadas pela PM na Bahia em 2019 eram negras
A Bahia vive uma crise sem precedentes na segurança pública. O estado que já ocupava posições alarmantes nos rankings de violência, agora lidera o número de mortes por intervenção policial no país, com 22% do total nacional, segundo o Anuário de Segurança Pública. Só nas últimas semanas, 32 baianos perderam a vida em ações policiais, número que choca e evidencia a falência do modelo de segurança vigente.
De acordo com o Anuário, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, foram 1.464 mortes decorrentes de intervenções policiais na Bahia. É no estado, também, que estão 11 das 20 cidades mais violentas do país.
Os dados mapeados pelo Instituto Fogo Cruzado também apontam para um cenário desolador: entre julho de 2022 e junho de 2023, nos 13 municípios que compõem a Grande Salvador, foram registrados 1.545 tiroteios, que culminaram em 1.422 vítimas, destas, 1.097 morreram. Em média, 39 pessoas são baleadas por mês durante ações ou operações policiais. Apenas no mês passado, foram mapeados 178 tiroteios, com 151 pessoas mortas.
O coordenador do IDEAS, Wagner Moreira, aponta para um “pacto de letalidade” e denuncia a falta de transparência e a ocultação de dados sobre a violência policial no estado. A Instrução Normativa 001/2019, que permitia à PM investigar seus próprios casos de letalidade, contribuiu para a impunidade e o aumento da violência, apesar de ter sido considerada inconstitucional pelo TJ-BA em março deste ano.
Enquanto isso, jovens e crianças negras seguem sendo as maiores vítimas dessa guerra sem fim. Daiane Ribeiro, advogada do Instituto Odara, destaca a aplicação da “pena de morte” para corpos negros e periféricos, citando casos como o de Giovana (11 anos), Joel (11 anos) e Gabriel (10 anos), crianças mortas em ações policiais.
Diante desse cenário desolador, organizações da sociedade civil, como o IDEAS e o Odara, lutam por políticas públicas integradas e pela construção de um modelo de segurança pública que priorize a vida e a dignidade humana. É hora de exigir do Estado ações concretas para conter a escalada da violência policial e garantir o direito à vida e à segurança para todos os cidadãos.
É preciso que o Estado assuma sua responsabilidade e implemente medidas urgentes para garantir a saúde mental e o bem-estar dos policiais. A criação de programas de acompanhamento psicológico, a melhoria das condições de trabalho e a revisão dos critérios de seleção são passos essenciais para prevenir novas tragédias e construir uma política de segurança pública mais justa e eficiente.
É hora de romper o ciclo de violência e investir na valorização e no cuidado com aqueles que dedicam suas vidas à proteção da sociedade. A final, a segurança pública é um direito de todos, inclusive daqueles que a garantem.
Se não nós, quem?
Vive la Résistance!
Saravá
Augusto Mitchell