Por Marconi de Souza Reis
A história que publico hoje vai emocionar demais os brasileiros quando vier em formato de romance ou cinema. É dramática, trágica, lírica, romântica e até épica. Trarei hoje apenas uma sinopse, a espinha dorsal, e desde já agradeço à família por me confiar ser o escritor desse enredo mítico. Sigam-me:
José Augusto Carvalho de Araújo, filho de uma família da alta sociedade baiana, veio ao mundo rompendo relações com o próprio pai desde o berço. Por ter sido a razão da morte da mãe durante o parto, seu pai, Joaquim Bahia Araújo, o rejeitou, e ele foi criado por um tio paterno, Zé Maria Araújo, e sua esposa, dona Noêmia.
O garoto teve acesso à educação de qualidade com os tios, visto que estudou no Colégio Antonio Vieira. Mas, ainda menino, passava também semanas morando no terreiro de mãe Menininha do Gantois, para que Zé Maria e dona Noêmia pudessem viajar mundo afora. Como se vê, mítico desde o começo…
Acontece que José Augusto dedicou-se aos estudos e, ainda muito jovem, ingressou por concurso público na Petrobras. Além disso, tornou-se colaborador do Jornal A Tarde, onde escrevia, diagramava e editava reportagens. Era final da década de 1950, época de explosão do petróleo baiano.
No início dos anos 60, José Augusto interessou-se pela política e tornou-se militante de esquerda. Candidatou-se a deputado e, num de seus discursos, no município de Candeias, conheceu Maria Neide, que morava numa fazenda na distante Conceição do Coité. Ela estava ali de veraneio com a família.
Neta de cigana, Maria Neide viveu toda a sua infância e adolescência ajudando aos pais na lida com a terra, de onde tiravam o sustento. Assim como uma típica tabaroa, ao ver aquela multidão cercando um pequeno palanque, parou por alguns minutos e ficou embevecida, boquiaberta…
Estava encantada com as palavras bonitas e de difícil entendimento que um dos homens falava ao microfone. Sem saber, ouvia pela primeira vez a voz do homem de sua vida, com o qual iria casar e ter nove filhos – dois homens e sete mulheres. José Augusto avistou Maria Neide no meio da multidão…
E depois daquele olhar não conseguiu mais se concentrar em seu discurso marxista. Largou o microfone para seu colega com o único intuito de ir em direção àquela mulher, que já se preparava para deixar o local. Apaixonado, demais apaixonado, decidiu apresentá-la dias depois à família.
Seus pais de criação, que já repudiavam sua escolha política, não gostaram nada do que viram, afinal, tratava-se de uma interiorana, de origem humilde, semianalfabeta, enfim, uma mulher sem qualificação para aquela família tradicional. Eles não aceitaram Maria Neide e repudiaram a ideia do casamento.
Mais do que isso: colocaram José Augusto num bico de sinuca: Escolher entre uma futura herança e o seu “insensato” amor! Ele não pensou duas vezes: ficou com Maria Neide, que também fugira de casa. E assim vieram os dois primeiros filhos do casal – José Augusto Filho e Nomar Araújo.
Acontece que, dois anos depois, estourou o golpe de 1964, e ele passou a ser caçado pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), do regime militar. Desesperado, deixou os dois filhos com Zé Maria e, acompanhado da mulher, fugiu às pressas para o Rio. Nem mala levou na fuga.
Por alguns meses, o casal morou nas ruas do Rio, em abrigos, pedindo esmola, enfim, esperando arrefecer o clima de guerra. Mas, ainda em 1964, José Augusto criou coragem e foi ao jornal “O Globo” pedir emprego. Ao adentrar a Redação, uma surpresa: gargalhadas e piadas intermináveis.
O problema é que ele vestia roupas doadas por quem se compadecia de vê-lo morando na rua. José Augusto mais parecia um palhaço de circo: calça vermelha, paletó amarelo e uma gravata cor de abóbora, além dos cabelos esvoaçados pelo vento e chuva. Ninguém levava fé naquele nordestino que dormia na rua e se vestia como palhaço.
– Meu pai nos contava isso com as lágrimas escorrendo ao rosto, lembra Augusto, um dos seus nove filhos.
Mas, insistente, voltou por dias consecutivos ao jornal “O Globo”. Os jornalistas percebendo que ele não desistiria, decidiram fazer um teste, até para se livrar daquele “espantalho” nos corredores do jornal. Mandaram-no redigir um texto e copiar outro numa velha máquina de escrever Olivetti!
De repente, todos pararam de rir de sua aparência “medonha” e ficaram espantados mesmo foi com a agilidade de seus dedos. José Augusto era um fenômeno na datilografia, além de ter um excelente texto. Resultado: foi imediatamente contratado, mas como diagramador, e com um salário bem miserável.
Neide Maria passou a trabalhar como doméstica e a vida melhorou um pouquinho. Então alugaram uma casa e tiveram outros filhos – Nohama, Nomara, Najara, Naíra e Augusto Mitchell –, ao longo da década de 1960 e início dos anos 1970. Eram pobres de “marre deci”, mas, pelo menos, havia agora uma paz…
Acontece que, no final do governo Médici, o DOPS começou a rondar a sua casa e a porta do jornal “O Globo”. E ele sabia disso porque, toda vez que saía (e voltava) de casa para o trabalho, dava várias voltas nos quarteirões. Ao ter certeza que estava sendo novamente seguido pelos militares, fugiu…
Foi com toda a família para Volta Redonda, onde o seu pai biológico, Joaquim Bahia Araújo, mantinha um jornal impresso – “O Independente”! No entanto, este só lhe deu guarida por uma noite. No dia seguinte, ele, a esposa e a penca de filhos voltaram para a vida de andarilho maltrapilha.
A dificuldade era tanta, que José Augusto foi largando os filhos com famílias de parentes – algumas meninas foram parar em São Paulo nas casas das tias, irmãs de Neide Maria. Enfim, o casal decidiu ficar apenas com os filhos mais novos – Naíra, Augusto Mitchell e a recém-nascida Noêmia –, e foram morar na Baixada Fluminense, subúrbio do Rio.
A casa que conseguiram alugar ficava às margens de uma vala grande e fedorenta, por onde passava boa parte do esgoto da Baixada. Maria Neide passou a lavar para fora, trabalhar em casas de família como diarista, enquanto José Augusto conseguiu emprego numa fábrica de café.
As três crianças ficavam em casa de vizinhos, comendo o que sobrava, o que era “um luxo”. Mas isso durou muito pouco. José Augusto foi mais uma vez descoberto pelo DOPS – não havia lugar onde fosse, que não existisse um milico à distância vigiando-o –, daí que decidiu fugir de novo, desta feita de volta para Salvador.
E vieram para a casa dos seus pais adotivos – os tios Zé Maria e dona Nôemia –, na Garibaldi. Ocorre que o reencontro de José Augusto com seus dois filhos mais velhos (José Augusto Filho e Nomar), que ficaram com os tios, foi explosivo. Eles não o reconheceram e evitavam qualquer tipo de contato.
E não era para menos, afinal, José Augusto os deixou em 1964, quando eram crianças de dois e quatro anos de idade. Para evitar os constantes conflitos, José Augusto e sua esposa decidiram então deixar aquela casa com os outros filhos. E sabe onde foram morar? Debaixo do viaduto da Federação, próximo à TV Itapoan, na Garibaldi, em Salvador.
– Foi nessa época, aos pés da torre da TV Itapoan, que eu comecei a tomar ciência de quem eu era, conta Augusto Mitchell, com lágrimas nos olhos.
Era final dos anos 70. Nessa ocasião, Augusto, criança de quatro anos de idade, matava a fome com o que achava na rua, principalmente os trabalhos de macumba. “A farofa dos bozós era até boa”, lembra, sem nojo algum. E foi nesta época que ele cometeu o primeiro e único furto da sua vida. A história é a seguinte:
Ao vagar pelas ruas daquela região próxima à TV Itapuan, Augusto avistou pela janela de uma casa, também simples, uma mesa farta, pelo menos do ponto de vista de quem não tinha nada. Ele pulou a janela e pegou uma vara de pão. Saiu correndo e, durante o caminho, tirou pequenos pedaços para saciar a fome.
Quando chegou em sua moradia, debaixo do viaduto da Federação, deu o pão à mãe para repartir com os irmãos e o pai. Eles, com um tom sério e bravo, lhe perguntaram onde achou o alimento. Sem resposta, Augusto foi obrigado a ir com a mãe, puxado pela orelha, até a casa onde cometeu o furto.
Chegando lá, sua mãe gritou pela mesma janela que, minutos atrás, ele havia pulado:
– “Ô de casa!”
Uma senhora veio atender, e, naquele momento, Augusto já nem sentia a orelha, de tão “anestesiada” de dor e de medo.
– Foi a senhora quem deu esse pão ao meu filho?, perguntou Maria Neide.
– Não! Por quê?
– Porque meu filho apareceu com esse pão lá em “casa” e a gente não tem dinheiro para comprar… Se a senhora não deu, ele então pegou, e quero que lhe devolva!
Naquele momento, todos os indícios apontavam contra Augusto, inclusive a marca do seu pé sujo ainda gravado na parede da casa. Maria Neide o obrigou a devolver o pão, embora a senhora não quisesse recebê-lo de volta. Ademais, o pão estava muito escuro por conta da mão imunda do então menino de rua.
A senhora recebeu o alimento, mas, a partir daquela data, toda vez que passava pelo viaduto da Federação deixava um saco com pães. Naíra, irmã mais velha do que Augusto, saía também pelas redondezas pedindo esmolas para alimentar a família e, certa feita, na porta da FM Itapoan, foi ajudada por Raimundo Varela.
A partir daquele dia, o radialista sempre mandava mantimentos e alguma importância em dinheiro para aquela família, embora jamais soubesse que ali se encontrava um perseguido dos militares. Naquele ano, conhecido mesmo na FM Itapoan era outro José Augusto, com a canção “O primeiro amor”, sucesso de 1978.
Augusto e a família são muito gratos a Raimundo Varela, afinal, ele ajudou a minimizar a dor naquele viaduto. O tio Zé Maria, quando soube que eles estavam naquela condição, foi lá visitá-los, e perguntou o que desejavam para sair da situação deprimente. Num estalo súbito, José Augusto teve uma ideia e fez um só pedido ao pai adotivo:
– Quero uma máquina de escrever e muito papel. Você pode me trazer?
Espantado com o pedido, Zé Maria retrucou:
– Para que diabos você, um mendigo de rua, quer uma maquina de escrever?
– Para escrever poesias, respondeu José Augusto.
O velho deu uma risada irônica e disparou:
– Um mendigo apaixonado que escreve poesias debaixo de um viaduto. Está bem… Vou lhe trazer máquina e papel.
No dia seguinte, cumpriu o prometido, sem saber que estava contribuindo para uma mudança radical na vida daquela família. De fato, com aquela máquina José Augusto renasceu das cinzas, tal uma fênix. Mas isso ainda iria durar alguns anos, afinal, os milagres modernos viajam em trotes lentos, como Jesus adentrando Jerusalém num jumento.
A verdade é que, com aquela máquina, José Augusto escreveu uma carta ao então ministro do Trabalho, Murilo Macedo, solicitando a sua anistia política e o reingresso à Petrobras, que deixara para traz para fugir da repressão militar. E não sossegou: enviou outras cartas, e mais cartas, e mais cartas…
Volta e meia, porém, Zé Maria passava por lá e perguntava a José Augusto:
– E aí… Como vão as poesias?
– Estou sem inspiração, desconversava José Augusto, e o velho saía rindo.
Tempos depois, sem mais suportar vê-lo naquele sofrimento, Zé Maria alugou uma casinha simples na Federação e os pôs lá. Logo depois, Neide Maria ficou grávida da caçula, que levou o nome da mãe – Neide. A casa era colada (parede com parede) com a sede da TV Itapoan. Augusto lembra nitidamente dessa casa:
– A gente agora morava numa casa, mas não tinha comida. Por diversas vezes raspei a parede para comer o pó, pois a gente ainda passava muita fome.
Foi nessa época, início dos anos 80, que Augusto Mitchell passou a brincar com imensas caixas de fitas de vídeo e veio a sua paixão por televisão. As fitas eram jogadas pela emissora no lixo da calçada. Augusto fuçava o lixo da TV, tamanho encanto por aquele mundo televisivo.
– Eu via muita gente bonita e sorridente entrar e sair da TV Itapoan. Ficava encantado com aquilo…, lembra.
Mas isso era, digamos, a imagem de chantili em prato vazio, afinal, nessa ocasião, Mitchell, os irmãos e a mãe ainda peregrinavam nas ruas pedindo comida nas casas e restaurantes, enquanto o pai não parava de enviar as tais cartas. Nesse calvário, um dia entraram numa igreja na Garibaldi para pedir comida, e Augusto Mitchell viu um piano.
– Naquele dia, matei a fome do estômago, mas sai com fome n´alma, fome do piano.
Ele colocou as mãos sujas sobre o teclado e nunca esqueceu a cena. Ficou viciado em ir à igreja, somente para ver o instrumento. Até que um dia avistou uma moça ensaiando a canção “The Winner Takes It All”, do ABBA. Aquela canção, inclusive, o fez chorar quando ouvira pela primeira vez a melodia no ônibus, vindo do Rio.
– Eu nunca soube explicar o porquê dessa música causar isso em mim. Naquele dia, lá na igreja, ao olhar para trás, a moça que tocava o piano viu um menino paralisado, com metade do rosto escondido pela porta e a outra metade à mostra, onde as lágrimas eram mais visíveis do que os olhos, relembra.
A moça parou de tocar, colocou-o no colo e o levou até o piano. A cena eternizou-se na sua memória. O ano era 1982… A letra de “The Winner Takes it All” é muito triste, porque retrata uma separação judicial real (ocorreu com o principal casal do ABBA). Mas foi, naquela época, que veio o milagre naquela família.
José Augusto recebeu a notícia de que as suas cartas, escritas debaixo do viaduto de outrora, atingiram o alvo em cheio. Além da anistia política, o governo militar decidiu indenizá-lo pelos 20 anos afastados da Petrobras, bem como conceder-lhe a aposentadoria vitalícia. E mais: ganhou fãs em Brasília!
O presidente João Baptista Figueiredo redigiu, de próprio punho, um ofício elogiando as cartas de José Augusto. E quem trouxe esse documento foi seu tio Zé Maria, porque, quando José Augusto enviava as correspondências para Brasília, colocava o endereço do tio como remetente.
Enfim, a vida daquela família deu uma guinada incrível. José Augusto comprou quatro apartamentos e um Santana, que era o melhor carro dos anos 80. A aquisição desse automóvel de luxo foi, inclusive, uma resposta à humilhação que sofrera de um de seus primos, quando morava no viaduto.
– Um dia, lá no viaduto, meu pai pediu uma carona a um primo, e ele disse que não iria sujar o estofado do automóvel, um Chevette. Meu pai ficou chocado com aquilo. Quando recebeu a indenização do governo federal, comprou o melhor carro da época para nossa família, recorda Mitchell.
A verdade é que José Augusto reuniu os filhos espalhados pelo país, e deu-lhes a melhor educação. Todas as filhas – garotas belas – se formaram, são casadas e têm filhos. Neide, a caçula, vai se formar agora em Medicina. A única baixa foi José Augusto Filho, que se viciou em cocaína e faleceu atropelado em Amaralina.
Augusto Mitchell foi alfabetizado aos nove anos de idade, mas, nem por isso, deixou de brilhar na vida. Aos 20 anos de idade, fundou o jornal Revista Bahia Acontece, que, no início, só buscava angariar fundos para ajudar moradores de rua. E, durante um bom tempo, logrou êxito nessa empreitada. Ele explica:
– Eu quis realizar o sonho do meu pai, que planejava criar uma ONG para ajudar os mendigos. Graças a Deus, hoje é a minha irmã caçula quem faz isso através do Instituto CAAVIDA, criado por ela depois de ter um sonho com o meu pai.
Enfim, José Augusto, após a tortura psicológica que sofrera com a ditadura militar, candidatou-se a vereador de Salvador em 1988, mas não se elegeu, porque seus votos foram para um candidato homônimo – Zé Augusto –, fato este que o martirizou ainda mais nos anos seguintes.
Entrou em profunda depressão… Tempos depois, desenvolveu um câncer de pulmão, lutou anos para sobreviver, mas faleceu em 24/02/2001. Como se vê, são 20 anos de uma tortura sem fim… Essa história, então inédita até este momento em que vocês leem, caro leitor, querida leitora, merece um livro ou um cinema!
Após a morte do pai, Augusto foi ser analista de conflito da telefônica Oi e TIM e tornou-se mediador das operadores com a Anatel e Procon. Cursou jornalismo na Faculdade 2 de Julho e trabalhou na RIC Record e RBS e TVBE em Santa Catarina e, ainda, está fazendo o curso de bacharelado em Direito na UNIFASS. Hoje é âncora do telejornal da CNT na Bahia, e proprietário da TV Soteropolitana e da Revista Bahia Acontece.
Augusto Mitchell Carvalho de Araujo aprendeu sozinho a tocar violão, sax, bateria e piano. Eu mesmo fui filmá-lo tocando “The Winner Takes It All”, do ABBA, na Ladeira da Barra (vídeo abaixo). Sua mãe, Maria Neide, que aparece no final do vídeo, ainda está viva, mas com um silêncio no rosto que me faz lembrar Edvard Munch – num grito ensurdecedor da tortura ainda infinita.